Vinte anos depois de Nunca Nada de Ninguém, fresco acutilante da sociedade yuppie do início dos anos noventa, fresco com gente embriagada pela ideia do sucesso, Luísa Costa Gomes e Ana Tamen voltam a encontrar-se para pintar uma paisagem mais sombria, mas não menos grotesca. Os dias, hoje, passam a fio entre os restos de sonhos que afinal são frias transacções imobiliárias. Ou nem isso.
Diz Florinda, a agente imobiliária, num desabafo de momentâneo desencorajamento: “Mas é isto, Palmira, dias a fio. Caves, grutas, poços, garagens, anexos em varandas, corredores, arrumos, estúdios ao rés-do-chão nas traseiras dos cemitérios. Mortos de fome, desapossados, velhos sem nada, mulheres sozinhas com ranchadas de filhos. Não se consegue um negócio. Os grandes arrebanharam os condomínios, os apartamentos, e nós ficamos a esgaravatar o fundo da gamela.” A colega Palmira contrapõe, optimista: “Mas o poço até está por um preço muito bom.” E Florinda, filosófica: “Pois que remédio, temos de valorizar o poço, é o que nos resta!”. Estamos em Portugal, já se viu. São agentes imobiliários competindo pela comissão, intrigando, sonhando a sua Oportunidade Única para sair da corrida de ratazanas, e um deles é amigo de uma jibóia com quem aprende a rastejar e outra é uma que não dorme e que tem pena do seu próprio sofá. E há um, claro, que vende ouro e seguros de saúde. E muitos outros, na corrida, sempre, sempre, dias a fio.
Luísa Costa Gomes