“Para mim, a questão chave é sempre a mesma: “Que movimentos para que música?”, e a tarefa mais árdua é encontrar, e depois desenvolver, a linguagem corporal adequada para o trabalho que estou a criar. De qualquer modo, como o objectivo é alcançar mais do que uma harmonia superficial e decorativa entre a música e a dança, logo que a música deixe de ser um mero medium prático, mais ou menos incidental para o movimento que ‘acompanha’, então surge inevitavelmente a questão do significado.”
Comentário da coreógrafa em 1992, no início da criação de Mozart/Concert Arias
Desde então, Anne Teresa De Keersmaeker não se desviou um milímetro da sua busca para encontrar a resposta a esta questão, que permanece actual. De qualquer modo, em doze anos e dezoito criações, através do seu encontro com compositores como Bach, Bartók, Beethoven, Schoenberg, Steve Reich, Purcell, Stravinsky e Joan Baez, não esquecendo obviamente as improvisações de Aka Moon, tem vindo a explorar diversos tipos de universo, de arquitectura, de movimento e de significado…
O que significa para a coreógrafa e para o público a revisitação de Mozart / Concert Arias, un moto de gioia?
“Apesar de preferir desde sempre caminhos que levem a Companhia em frente, sinto-me privilegiada por aceitar as solicitações de teatros e festivais em inúmeras cidades, porque Mozart/ Concert Arias traz-me à segunda grande questão, depois de Ottone, Ottone, que explorava a fusão da qualidade dramática e da dança induzida pela música, ela própria também induzida por um texto.
“Este primeiro espectáculo criado durante a residência da Companhia Rosas no Théâtre de la Monnaie, a ópera nacional Belga, em Bruxelas, confrontou pela primeira vez os bailarinos com uma grande orquestra e com três sopranos, situados em palco mesmo ao lado deles. Desde então a orquestra mudou, os cantores também e voltarão sempre a mudar, incutindo de cada vez um novo ímpeto à dança com a sua energia e personalidade própria. Bailarinos do actual elenco da companhia dançarão com Bruce Campbell, Vincent Dunoyer, Nordine Benchorf e Marion Levy, do elenco original para tomar posse desta “corte de amantes”.
O espectáculo surgiu de uma primeira aria Ch’io mi scordi di te (KV 505). Che a lui mi doni puoi consigliarmi? E puoi coler che in vita…Ah no. Sarebbe il viver mio di morte assai peggior. […] Non temer, amato bene, per te sempre il cor sarà. Più no reggo a tante pene, l’alma mia mancando va. […], na qual Mozart faz uma declaração musical de amor à soprano Nancy Storace. Ele parece buscar a permanência da memória da sua quente e terna voz na aria, e ao mesmo tempo parece querer abandoná-la – através da secção de piano – uma lembrança dos sentimentos profundos que ele incutiu na sua música e dos sentimentos profundos que nutria por Nancy. Tinha trinta anos de idade.
Todas as outras arias foram escolhidas pela sua relação com Ch’io mi scordi di te, como as diferentes facetas da emoção que Mozart, tendo-a experienciado ele próprio, foi capaz de traduzir em música. De facto, são acerca do amor, dissenção, separação, ausência…e da convicção que os amantes se encontrarão novamente no futuro. Tudo isto o compositor – que apesar de tudo é um homem – entrelaçou, de acordo com o seu temperamento, com melancolia, sensualidade e uma alegria sem restrições, lágrimas e risos, com acessos de ciúme e raiva, com piscadelas de lascívia e atrevimento…e infinita ternura. Dez arias para soprano, todas compostas entre 1777 e 1789, quando Mozart tinha entre 21 e 33 anos de idade. “Arias de juventude”, chama-lhes a coreógrafa. Excessivas e plenas de vida, espírito e imaginação, cheias de um secreto tumulto.
Incluem algumas páginas orquestrais magníficas extraidas de Cassations e outras Divertimenti para instrumentos de sopro, bem como umas pequenas e isoladas peças para pianoforte, incluindo o comovente Rondo, o leve Minuet e o peculiar Gigue K.574, em G maior, “Estes ‘interlúdios’ puramente musicais conferem uma certa leveza ao espectáculo, prolongam ou antecipam o humor das arias e dão-lhes uma unidade dramática”, escreveu Thierry Lassence no jornal diário “La Libre Belgique”, em 1992.
Depois de solucionada a pergunta “que música?”, surge a inevitável questão: “que movimentos lhe conferem significado?”.
No início, a dança desenrola-se num fabuloso piso elíptico, concebido por Herman Sorgeloos, que reproduz um soalho padronado em diversas madeiras, inspirado em motivos do pequeno Salão Vienense do Palácio de Schönbrunn, lembrando os desenhos de Escher. Remete-nos para o tempo em que os grandes artesãos trabalhavam com esmero técnico a madeira, a porcelana, ou a prata, e em que o vestuário era bordado e decorado…Também os bailarinos usam vestuário de época voluptuosamente adaptados por Rudi Sabounghi, de acordo com os seus caprichos ou loucuras…
O finale de Mozart / Concert Arias transporta-nos, assim como moto di gioia, “Movimentos de alegria”, de Mozart. A dança personifica o divino Mozart e os bailarinos encarnam as suas mágicas, dolorosas e temperamentais arias. Enquanto a música, interpretada com paixão e mestria pela orquestra e pelas vozes aveludadas dos sopranos torna a atmosfera cintilante, os bailarinos no seu vestuário de época cristalizam os seus estados de espírito. Estados de espírito sensuais, elegantes, delicados, imprudentes, divertidos, espirituosos, ternos ou descontrolados, sempre cativos dos desígnios do coração. Os seus movimentos buscam harmonia, explodindo com imaginação, incitando à insolência ou às caricias. Longe de adoptar as convenções, a coreografia constrói uma arquitectura encantada no magnífico piso do cenário. Mas nunca a dança é reduzida a uma mera abstracção geométrica. Em vez disso, transportados pela música apaixonada de Mozart, os corpos dos bailarinos transmitem o drama complexo e tortuoso dos que são consumidos por amor, e as feridas de amor, ironia, crueldade, frívolidade e presunção.
Que significado tem isso actualmente? É cheio de significado, abarrota de significado. “Permite aos bailarinos e ao público a oportunidade de reviver o prazer que tiveram, um prazer que não diminuiu”, afirma a coreógrafa, “E isso é o mais importante…”
Claire Diez
Jardim de Inverno
2 de Dezembro
21h00
Conferência por António Pinto Ribeiro
“Rosas Danst Rosas, coreografia de Anne Teresa de Keersmaeker apresentada a 24 de Fevereiro de 1987, na Sala Polivalente do Acarte, Fundação Calouste Gulkenkian, e a sua influência na Dança portuguesa contemporânea”. Seguida da projecção do documentário
Rosas Danst Rosas (1997), realizado por Thierry de Mey.
Jardim de Inverno
6 a 9 de Dezembro
20h30
Projecção da curta-metragem Rosa (1992), realizada por Peter Greenaway (15m).