“… Dois homens abordam-se sem se conhecerem: diga-me o que quer que eu vendo-lho, diz o primeiro e o outro responde: diga-me o que tem que eu digo-lhe o que quero.” Patrice Chéreau
Voltar a Koltès significa decifrar uma obra imprescindível para a compreensão da dramaturgia do final do século vinte, representativa da condição humana em diálogo com os nossos tempos.
Com raízes na rua, nos marginais, nos descriminados e nos injustiçados Na Solidão dos Campos de Algodão é uma obra muito representativa deste autor torrencial. Apresenta-nos uma atitude insubmissa face à hierarquia social do bicefalismo estrutural de dois extremos: o vendedor e o comprador. No início é uma procura, uma proposta, uma sedução empenhada em conseguir transmitir e receber, mas logo surge a dúvida sobre a incomunicação e a crua desconfiança que uma sociedade multiétnica e multiracial impõe, transferindo este encontro para a inevitabilidade do homem contemporâneo enfrentar as frustrações para satisfazer as suas mais recônditas urgências. O contacto de duas pessoas sem passado comum, sem linguagens familiares e sem cumplicidade histórica acontece em território neutro, numa noite fria deserta de sinais, numa qualquer rua sem memória, silenciosa. Como dois animais que se cruzam no mesmo território, uma hostilidade violenta submerge estes dois seres. Igualmente confusos, cara a cara, dois estrangeiros, digladiam-se num tempo e espaço de diálogo ou morte. É um combate dialéctico, dominado pelo medo, que apesar da densidade verbal assinala um conflito que ultrapassa as palavras. Sem alternativas à ausência de desejo, surge a inevitável guerra e lutam.
“Há aquilo que não se pode dizer e aquilo que não se quer fazer, pois nunca se deve entregar ao outro a fraqueza de mão beijada, existe uma espera louca e tenaz, a descoberta de que se é pobre, pobre de desejos, há todas as feridas que se podem fazer ao desejo do outro e o sofrimento que se descobre e que ao mesmo tempo se rejeita.” Patrice Chéreau